Relatos no Dia Internacional da Mulher indicam que ainda há diversos
obstáculos a serem batidos e que preconceito, embora velado, resiste

Vinícius Dias

Das arquibancadas aos cargos executivos, passando pelos gramados, as mulheres estão por todos os lados. Torcedoras, árbitras, atletas, jornalistas e até dirigentes, elas têm, cada vez mais, marcado presença no mundo do futebol. Mas vez garante voz? No Dia Internacional da Mulher, os relatos mostram que ainda há obstáculos a serem superados e que o preconceito, embora velado, resiste. Em enquete com mais de 300 participantes realizada pelo Blog Toque Di Letra, por exemplo, 41% disseram já ter se sentido desrespeitadas nos estádios por serem mulheres.


Entre os 60 clubes das Séries A, B e C, há apenas uma mulher no comando: Myrian Fortuna, do Tupi. Neta e irmã de ex-presidentes, a ex-nutricionista do clube de Juiz de Fora assumiu o cargo em 2014 e foi reeleita no ano passado. Se internamente não houve grandes obstáculos, nos primeiros contatos externos eles apareceram. "Eu não gostaria de acreditar nisso (perda de patrocínios por ser mulher). A desculpa era sempre a crise no país. Mas a gente notava", revela. "Muitas empresas não nos recebiam quando eu fazia o convite, a gente não tinha resposta", acrescenta.

Myrian Fortuna: comandante do Tupi
(Créditos: Felipe Couri/tupifc.esp.br)

O roteiro inicial incluiu entraves com um clube, classificado como exceção, mas cujo nome evita citar, e perguntas revestidas de preconceito, como: o que você está fazendo aqui? "O mesmo que você" era a curta resposta. Mas o tempo passou e, com os desafios superados, a situação mudou. "Hoje, é bem mais tranquilo. Até porque foi na minha gestão que o Tupi subiu para a Série B, então houve um cala a boca, digamos assim", garante. Na FMF e na CBF, Myrian faz questão de dizer, o tratamento sempre foi o melhor possível. "Fico até com vergonha", pondera.

De 'torcedoras' a protagonistas

Coordenador do Museu Brasileiro do Futebol, no Mineirão, o historiador Thiago Costa aponta o início do século XXI como período de questionamento das funções sociais, ressaltando a associação com os movimentos de afirmação pós-década de 1960 na conquista de espaço por parte das mulheres. "Historicamente, elas foram coadjuvantes. Até com o paliativo de dizer que o termo torcedor surgiu de uma referência do escritor Coelho Neto ao identificar as mulheres com lenços nas arquibancadas, balançando-os ou torcendo, aflitas com as partidas", detalha.

Mineirão recebeu seleção nas Olimpíadas
(Créditos: Ricardo Stuckert/CBF/Divulgação)

Por ser considerada incompatível com a natureza feminina, a prática do futebol foi proibida entre 1941 e 1979. A regulamentação ocorreu apenas em 1983. "Muito do que aconteceu com as mulheres e com o futebol foi a mais pura resistência por parte delas. Vencer esses anos de repressão foi um desafio para todos, inclusive homens", assegura Thiago Costa. "A luta das mulheres, simbolizada a cada dia 08 de março, remete à reivindicação de espaço na sociedade e reconhecimento da autonomia de seu lugar: onde a mulher se sentir mais confortável e representada", completa.

Entraves na imprensa esportiva

Sete décadas após a estreia feminina na imprensa esportiva brasileira, a presença de mulheres na editoria se tornou cena comum. O preconceito, porém, não foi definitivamente derrotado. "No primeiro contato, os homens costumam fazer um questionário para saber se eu realmente entendo de futebol. Muitos acham que estou no meio para dar em cima de jogador e várias vezes já fui assediada. Aos poucos, fui conquistando o meu espaço e hoje sinto que sou mais respeitada, porque eles sabem que estou no futebol para trabalhar", comenta Júlia Alves, de 22 anos.

Júlia revela obstáculos na profissão
(Créditos: Arquivo Pessoal/Júlia Alves)

Lamentando o machismo ainda presente na sociedade e, por consequência, no esporte, a jornalista assinala a dificuldade de conquistar a confiança dos companheiros de profissão e das fontes ligadas à área no início da carreira. "Nunca questionaram algo que eu falei, mas já recebi várias mensagens de surpresa: "'nossa, você sabe mesmo de futebol'. Como se isso fosse anormal". Outro ponto negativo é a ênfase em aspectos secundários. "Me incomoda muito a valorização dos atributos físicos da jornalista, da beleza, e não da qualidade profissional", reclama.

Raio-X: mulheres na arbitragem

Quando o assunto é arbitragem, Minas Gerais foi o cenário do pioneirismo. Nos anos 1970, em tempos de ditadura, a abaetense Léa Campos se tornou a primeira mulher a apitar uma partida de futebol no mundo. Trajetória que abriu caminhos. Atualmente, o quadro da Federação Mineira, em cuja escola de árbitros Lea se formou, conta com três árbitras e 13 assistentes - dessas, uma árbitra e sete assistentes integram o quadro da CBF. Duas assistentes estão aptas a atuar em jogos masculinos, uma vez que alcançaram índice específico nos testes físicos: Helen Araújo e Fernanda Nandrea.

Helen, à direita, atuou em Tupi x URT
(Créditos: FMF/Twitter/Divulgação)

"O número vem crescendo gradativamente, justamente em virtude dos investimentos que se iniciaram na Fifa. O futebol feminino vem evoluindo em todo o mundo, e uma das necessidades é fortalecer o quadro feminino", comenta Giulliano Bozzano, presidente da comissão de arbitragem da FMF. A expectativa é de que a elite mineira tenha partidas apitadas por mulher daqui a três anos. "As oportunidades vêm sendo dadas e a tendência é de que, se tudo correr bem, tenhamos uma árbitra preparada para, de repente, atuar no módulo I em 2020", acrescenta.

Entre os gramados e o emprego

Há barreiras mesmo em um cenário restrito a mulheres. Camisa 10 do América na conquista do estadual feminino em 2016, Aline Guedes vive dias de incerteza. "Ainda não renovaram meu contrato, tendo em vista que tenho outro trabalho e os horários são incompatíveis. Mas a diretoria do América está tentando um acordo com o Olympico Club (onde é assistente técnica das categorias de base) pela liberação para viagens e jogos pelo Brasileiro", revela a meio-campista, de 27 anos, que tem visto o Coelho perder várias titulares e já recebeu propostas de outros dois clubes. 

Guedes: atleta tem futuro indefinido
(Créditos: Arquivo Pessoal/Aline Guedes)

Criticando a ênfase ao futebol masculino por grande parte da mídia, Aline revela uma triste constatação. "Infelizmente, em nosso país, ainda não podemos viver somente do futebol. Para seguir uma carreira futebolística, teria de largar tudo e tentar fora do Brasil, onde o futebol feminino é mais valorizado", diz. Ainda assim, mostra esperança na mudança da realidade em médio prazo. "O preconceito diminuiu e a tendência é melhorar a cada dia mais. Lugar de mulher é onde ela quiser. Mais apoio ao futebol feminino". O dia é de mais luta e menos comemoração.

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